Há algum tempo nosso escritório foi contratado para a defesa plenária no Tribunal do Júri de um caso que causou grande repercussão na mídia, inclusive do exterior, onde foi matéria veiculada em jornais ingleses e espanhóis, além de que, aqui, no Brasil, constituiu tese de doutorado em importante e tradicional universidade de ensino do direito.
Nosso cliente matou seu irmão tetraplégico à pedido dele próprio que não suportava mais viver daquela forma indigna, prostrado na cama, sem quaisquer movimentos, dependente de todos para tudo; sua mais completa ausência de movimentos o impedia até mesmo suicidar.
Como as leis brasileiras não admitem a eutanásia, ou seja, que alguém possa abreviar o sofrimento de doente incurável promovendo sua morte, nosso cliente foi acusado de homicídio qualificado nos termos do artigo 121, §2º. incisos II e IV combinado com o artigo 61, inciso II, letra “e”, todos do Código Penal o que poderia condená-lo à pena de prisão entre 12 e 30 anos.
Nossas leis, notada e principalmente o Código de Ética dos Médicos, até bem pouco tempo, exigia que estes profissionais promovessem a distanásia, ou seja, o prolongamento da vida de paciente terminal à qualquer custo, independentemente do sofrimento que isso pudesse causar.
Felizmente o atual Código de Ética Médica, que já vigia na época dos fatos e sobre o qual já tínhamos discorrido em palestra proferida aos médicos sob os auspícios da APM – Associação Paulista de Medicina, afastou em definitivo a conduta distanásica que anteriormente era exigida desses profissionais.
Em substituição da distanásia a legislação brasileira passou admitir a figura da ortotanásia, ou seja, permitir que doente tenha uma morte natural, digna, sem tratamentos inúteis, invasivos e por vezes dolorosos para manter a pessoa viva à qualquer custo; como exemplo a respiração artificial forçada por aparelhos.
No procedimento ortotanásico, o médico pode, sem cometer crime algum, desligar os aparelhos que artificialmente mantém o doente vivo, permitindo sua morte, neste caso considerada natural porque a manutenção de sua vida dependia de condição artificial externa, qual seja a utilização de aparelhos.
Suponha-se, porém, que desligados os aparelhos o paciente continuasse vivo; poderia nesta hipótese o médico promover sua morte ?
A legislação brasileira diz que não; a diferença está em que, ao desligar os aparelhos que mantinham o paciente vivo artificialmente, o médico não promoveu sua morte, apenas permitiu a ocorrência dela.
Já na hipótese de que, desligados os aparelhos o paciente continuasse vivo e o médico praticasse qualquer ato que levasse o paciente à morte, ele, médico, não estaria tão só permitindo a ocorrência da morte, mas a estaria causando, consequentemente cometendo o crime de homicídio.
Como se vê, a ortotanásia pode ser considerada um “meio termo” entre a eutanásia e a distanásia; de forma simplista poder-se-ia dizer que :-
- Eutanásia = antecipa a morte
- Ortotanásia = morte na hora certa
- Distanásia = prolonga a morte
Mas como defender nosso cliente ? Ele havia matado seu irmão que não se encontrava em estado terminal de qualquer doença; sua paralisia decorrente de acidente automobilístico permitia-lhe viver relativamente bem apesar da disfunção corporal que lhe era imposta pela quadriplegia; seu sofrimento era mais psicológico que físico…
Era óbvio não se tratar de caso de ortotanásia e como a eutanásia não é admitida em nosso ordenamento jurídico, nosso cliente clara e induvidosamente havia cometido o crime de homicídio.
Depois, como a imprensa noticiava na época, razões de cunho moral e religioso impediam a aprovação de sua conduta em abreviar o sofrimento do irmão; isso, evidentemente sem atentar-se para os riscos dos abusos que em tese poderiam ser cometidos por homicidas sob o pretexto de razões humanitárias e sentimentos de piedade.
Parecia enfim, um caso fadado ao insucesso na medida em que a lei, a moral e a religião não aprovavam e menos ainda admitiam a conduta de nosso cliente.
Seria, entretanto, justo e moralmente aceitável que nosso cliente permanecesse inerte, como mero expectador do martírio do irmão ?
Que amor fraterno seria esse que admitiria assistir passivamente a lenta e continuada agonia de quem se ama e por razões puramente legais nada fazer para livrar o ser amado de uma vida indigna e torturante ?
Trata-se de tema polêmico que sempre causou discussões acaloradas; há inclusive filmes muito interessantes à cerca da eutanásia tais como; “Mar Adentro”; “O Escafandro e a Borboleta”; “Como eu era antes de você” e “Menina de Ouro” dentre outros…
Esses filmes, ao abordar as questões sociais, pessoais e afetivas que orbitam a eutanásia, fazem refletir sobre o direito do ser humano à morte da mesma forma que tem direito à vida.
Como se sabe, as leis regulamentam as relações sociais, permitindo a vida em coletividade; daí serem necessárias para a ordenação interpessoal.
Mas e no aspecto pessoal, que respeita unicamente o que possa realizar o ser humano na solidão de sua individualidade, sem qualquer relação com o meio social ?
Neste caso, em que não existe relação do indivíduo com o meio social, a lei é absolutamente desnecessária porquanto nada há a ser regulamentado na relação que ele mantém consigo próprio…
Ou seja, nessa hipótese, a interferência Estatal via das normas legais, ao contrário de garantir direitos e prevenir responsabilidades, configura abusiva e arbitrária invasão da esfera personalíssima de decisão do ser humano !
Vale dizer; a interferência do Estado no campo individual que não guarda repercussão coletiva, representa violação dos princípios mais básicos da liberdade pessoal do indivíduo em autodeterminar-se de acordo com os ditames da sua consciência !
A própria legislação isso reconhece não punindo a autolesão; se o suicida sobreviver, desde que suas ações por si só não prejudiquem por alguma forma ou maneira direitos de outrem, ele não terá cometido crime algum; ou seja, o direito à morte é garantido desde que na modalidade do suicídio.
Por outro lado, qualquer seja a participação de outrem que de alguma forma induza, instigue ou auxilie o suicida é punida pelo artigo 122 do Código Penal.
Quanto mais na hipótese da eutanásia, quando as ações de alguém, mais que induzir, instigar ou auxiliar, promovam direta, ativa e voluntariamente a morte, ainda que à pretexto de abreviar sofrimentos…
A punição pela prática da eutanásia encontra-se no artigo 121 do Código Penal que tipifica o crime de homicídio.
Haveria então alguma justiça na prevalência do direito à vida em face do direito à morte na exata medida em que o direito à vida não encontra limitação, ao passo que o direito à morte é limitado ao suicídio ?
O direito à vida não deveria prevalecer apenas enquanto fosse possível viver bem ?
Caso contrário, esse direito à vida não passaria a ser dever para alguns e direito para outros, consistindo assim na quebra do princípio da igualdade ?
Quando, como no caso de nosso cliente, a paralisia total de seu irmão o impedia suicidar, muito embora ele assim desejasse para libertar-se da miséria que sua vida martirizante lhe impunha, não deveria ser lícito, pudesse ele contar com o auxílio de outrem ?
Privado de quaisquer movimentos ele não conseguia matar-se; única forma em que a lei admite o exercício de seu direito à morte, ou seja, a própria lei que antes da tetraplegia lhe conferia o direito à morte, agora, depois de sua tragédia pessoal, de forma impiedosa obrigava-o a um viver indigno e torturante na medida em que qualquer auxílio que pudesse receber seria considerado crime !
Estava ele, portanto, condenado à morte em vida, preso em seu próprio corpo até o fim de seus dias…
Isso nos obriga reconhecer o fato de que as leis promotoras das políticas públicas de inclusão social dos deficientes físicos, ao invés de proporcionar igualdade de direitos, são na verdade preconceituosas discriminando as pessoas sãs das deficientes na medida em que impedem os que, como o irmão de nosso cliente, privados de movimento não conseguem exercer seu direito natural à morte digna e libertadora, o que qualquer pessoa que consiga mover-se pode livremente fazer.
Sob uma ótica piedosa e humanista que levasse em consideração o sofrimento imposto àquele indivíduo, obrigado a um viver indigno e martirizante, seria possível negar o direito de morrer ?
Se não conseguia matar-se porque privado de movimentos, não mereceria ele contar com auxílio externo para isso ?
Que direito natural à morte é este, cujo exercício fica condicionado à possibilidade física do deficiente que se dela não dispõe não pode exerce-lo ?
Direito impossível de ser realizado não é direito, senão hipocrisia !
A impossibilidade do livre exercício do direito natural à morte por quem não reúne condições físicas para isso por encontrar-se tetraplégico e que não pode contar com auxílio de outrem sem que isso seja considerado homicídio consubstancia claramente preconceito.
É ainda moral que a lei apresentando expectativa de punição da conduta legalmente criminosa, mas moralmente piedosa de quem se proponha garantir isonomia de tratamento entre sãos e deficientes no que tange o direito à morte, busque com isso manter situação discriminatória entre eles na medida em que impede possa a morte do quadriplégico consumar-se, condenando-o assim à morte em vida, perpetuamente aprisionado em seu próprio corpo inerte ?
Quando a Constituição Federal estabelece normas de proteção à vida, o que constitui o primeiro e o mais fundamental dos direitos tutelados pelo “caput” do artigo 5º. cuja inviolabilidade é garantida à todos os brasileiros e estrangeiros residentes no País, refere-se não apenas e objetivamente ao estado de ser vivo, mas a um modo qualificado de exercer os predicados da existência, de acordo com os padrões de dignidade existenciais ao direito de viver.
A vida não pode ser um demorado e penoso processo de morrer; a dor, o sofrimento e o esgotamento do projeto de vida são situações que levam as pessoas a desistirem de viver obrigando-as implorar pelo alívio da dor, pelo resgate da dignidade e pela piedade de morrer !
O princípio da igualdade entre as pessoas sãs e as que possuem males irreversíveis, encontra resposta no direito à liberdade e autonomia da vontade, cabendo ao indivíduo, decidir o que lhe aprouver com relação ao destino de sua vida, podendo nisso ser auxiliado quando pessoalmente não disponha de meios que lhe permitam realizar pessoalmente sua morte.
Mais que isso; qualquer ser humano que pretenda morrer deveria fazê-lo da forma correta, com dignidade e paz, de maneira rápida e sem sofrimento, o que só seria possível desde que assistido profissionalmente por médico que tanto lhe pudesse proporcionar.
Isso já é realidade nos países mais adiantados do mundo, onde a eutanásia já é considerada procedimento terapêutico definitivamente incorporado à prática médica. Na Europa, encontramos exemplos na Holanda, Bélgica, Luxemburgo, Suíça e Alemanha. Na América os exemplos estão em quatro estados estadunidenses (Washington, Oregon, Califórnia e Montana), Canadá, Uruguai e Colômbia.
Tais e tantos acometimentos foram levados à consideração do Corpo de Jurados na ocasião do julgamento plenário de nosso cliente.
Sensíveis à corajosa e desprendida demonstração de amor fraterno quando em face deste drama que constituiu verdadeira tragédia humana sem precedentes no mundo forense, o Júri decidiu pela absolvição de nosso cliente, reconhecendo assim que seu irmão tetraplégico tinha efetivo direito a morte que o libertou de todo sofrimento e martírio até então por ele experimentado e que o auxílio recebido, muito embora no aspecto puramente legal constituísse homicídio, na verdade era a única forma pela qual poderia alcançar paz.
Desta decisão absolutória que contrariava a lei, foi tirado recurso de apelação pelo Ministério Público, felizmente rejeitado pelo Tribunal de Justiça que confirmou a inocência de nosso cliente.
Assim a justa decisão a que chegou o Tribunal do Júri foi integralmente confirmada pelo Tribunal de Justiça que avalizou o entendimento de que a absolvição de nosso cliente representou a consagração do PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA, estabelecido pelo inciso III do artigo 1º. da Constituição Federal e bem assim pelos incisos do artigo 5º. do mesmo Diploma.
Quem morre não perde o poder de ser ator e agente digno até o fim; a eutanásia não defende a morte, mas a escolha dela por parte de quem a concebe como melhor ou única opção, pois quando a pessoa passa a ser prisioneira de seu corpo, dependente de outrem para a satisfação de suas necessidades mais básicas, o medo de ficar só, de ser um fardo, a revolta e a vontade de dizer não à nova condição, levam-na clamar pelo direito de morrer com dignidade.
Mais que respeitado, o direito de morrer, notada e principalmente quando, como no caso de nosso cliente, implique no dever de matar, deve ser atendido em todas as suas peculiaridades, objetiva, concreta e pragmaticamente consideradas.
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